“Nasci em terras
europeias, mais precisamente na Inglaterra. Lá conheci a amargura e a solidão.
Rejeitado desde a infância, aprendi a não sonhar. Obter o pão de cada dia era
toda a felicidade que poderia conseguir. Tive uma vida indisciplinada e livre.
A única lei que conheci e respeitei foi a lei do mais forte. Tal como o abutre
à espreita do alimento, eu vivia o dia a dia. A fome era a minha bússola.
Não questionava
minha situação, pois já tendo nascido num ambiente miserável, não conhecia
outra vida. Mais tarde, passei a observar as crianças abastadas, acompanhadas
de suas mães, senhoras de fino trato. Também admirava os homens nobres, que se
apresentavam sempre bem arrumados, ostentando uma riqueza inatingível.
Desgostava profundamente do inverno, pois o frio era intenso. Resistia às
custas de cobertores que roubava, ou que conseguia trocando por pequenos
serviços prestados. Cresci de forma vil e ultrajante, sendo repudiado por comerciantes
e mal visto pelas pessoas que passavam nas ruas. Praticava pequenos furtos para
sobreviver ou mendigava.
Quando atingi a
maioridade, fui recolhido à prisão por meus desvios de conduta.
Então, degenerei
mais rapidamente. O frio das celas e o gelo dos corações dos guardas faziam piorar
meu estado de espírito. Não havia solidariedade alguma. A dor e o sofrimento constantes
provocaram uma revolta íntima. Comecei a indagar porque a minha vida era tão difícil.
Esta miserável pergunta multiplicou a insatisfação com tudo. Passando a
questionar, perdi a defesa natural da inocência e comecei a desejar vingança.
Os outros deveriam conhecer o meu sofrer. Não ficaria mais calado, eu
revidaria.
Após cumprir a
minha pena, voltei a caminhar a esmo pelas ruas. Desta feita, as delinquências
que cometia tornaram-se mais graves. Assaltava com estiletes ou facas e intimidava
jovens, mulheres e viajantes. Tornei-me um marginal consumado.
Numa noite de
nevoeiro, comum em Londres, encontrava-me à espreita de uma nova vítima.
Deparei-me com um homem obeso que caminhava lentamente sob a friagem, à distância.
Aguardei nas sombras como o lobo espera a presa se aproximar. Surgi da
escuridão, despejando várias estocadas no infeliz homem. Queria roubá-lo, mas o
sangue que eu nunca havia derramado aterrorizou-me. Corri o quanto pude,
desesperado pelo atentado cometido num momento de insânia. Somente quando me
faltaram as forças por completo, eu parei. Nos dias seguintes, perambulei
atormentado pela imagem sangrenta, que martelava a minha mente sem parar.
Após um curto
período em que me desequilibrei por completo, dirigi-me ao rio Tâmisa. Do alto
da ponte que o atravessa, vislumbrei as águas que refletiam um céu cinzento.
Comecei a
chorar. Pensei o quanto eu era um ser miserável e, desta forma, quis punir-me
com a morte, acreditando que tudo se extinguiria para sempre. Então, mergulhei
e logo bati com a cabeça em algo sólido, mas não perdi os sentidos de imediato,
sentindo a água invadir os meus pulmões. Amarga ilusão! A morte veio
rapidamente, mas eu continuava vivo em espírito, não percebendo que havia
perdido o corpo físico. Na minha mente, as sensações da pancada na cabeça, do
sangue a jorrar e do afogamento perduravam. A sequência da cena do suicídio
repetia-se incessantemente. Eu era um pesadelo vivo. Por que não morria de vez?
Num estado de
sofrimento muito pior que o de antes, permaneci por longos anos. Não havia meio
de parar o processo. A ânsia pelo ar e a dor da ferida aberta eram minhas companheiras
inseparáveis. Mas, em um momento de lucidez, clamei pela ajuda divina.
Lembrei-me de
Deus porque usava seu Santo Nome para pedir esmolas quando fora mendigo, antes
de me tornar um bandido. Não sabia ao certo se Deus existia, porém a quem
recorreria?
Tive uma grande
surpresa ao ser retirado das águas por mãos generosas, em meio a minha dolorosa
aflição. Emocionado e esgotado, deixei-me invadir por um intenso torpor, vindo
a desfalecer.
Fiquei por muito
tempo num hospital espiritual, recebendo tratamento. Eu tinha muitas crises no
princípio, ainda rememorando o suicídio, mas também lembrando o assassinato que
cometera. Não tinha muitas esperanças de alcançar o equilíbrio, pois apesar da
pequena melhora inicial, estava já estagnado por longo período. Assim,
mergulhei de volta à matéria densa, renascendo no Brasil, à busca de lenitivo e
regeneração.
Obtive um corpo
defeituoso, mas que me foi muito útil para esquecer o passado tenebroso. Minha
nova vida foi relativamente curta e sofrida, mas durou o necessário para que eu
me reequilibrasse.
Hoje, permaneço
à espera de melhor chance na Terra, a fim de desenvolver sentimentos mais
nobres e, de fato, evoluir. Já fui informado que quando reencarnar novamente terei que resgatar o assassinato que cometi.
Provavelmente terei uma morte abrupta, não sei se da mesma forma que provoquei.
Porém, estou consciente da lei de causa e efeito e aceitarei o que Deus me
reservar. Tenho conhecimento de que a família que albergará meu espírito é
modesta, mas de bons princípios, e me facultará a oportunidade de estudar e ter
uma profissão. Agora compreendo as causas das minhas duras provações no passado
e pretendo, de forma mais resoluta, cumprir as metas traçadas a fim de
melhorar-me”.
Jordão 26/04/1995 (Espíritos Diversos, Depoimentos do além, p. 37)
A justiça de Deus é pontual, porém o seu amor para conosco ainda é
maior.
Sempre dá-nos novas oportunidades de ressarcirmos nossos
débitos, oferecendo oportunidades para isso, em novas reencarnações. Ele é tão
generoso que nos permite pagar nossas dívidas em “suaves prestações.”