582 Pode
a paternidade ser considerada uma missão?
–
É, sem dúvida, uma missão, e é ao mesmo tempo um dever muito grande que obriga,
mais que o homem pensa, sua responsabilidade diante do futuro. Deus colocou a
criança sob a tutela de seus pais para que esses a dirijam no caminho do bem, e
facilitou a tarefa, dando à criança um organismo frágil e delicado que a torna
acessível a todas as influências.
Mas
há os que se ocupam mais em endireitar as árvores de seu pomar e as fazer
produzir bons frutos do que endireitar o caráter de seu filho. Se esse fracassa
por erro deles, carregarão a pena e os sofrimentos do filho na vida futura, que
recairão sobre eles, porque não fizeram o que deles dependia para seu
adiantamento no caminho do bem.
583 Se
uma criança se torna má, apesar dos cuidados de seus pais, eles são
responsáveis?
– Não; porém quanto mais
as disposições da criança são más, mais a tarefa é difícil e maior será o
mérito se conseguirem desviá-la do caminho do mal.
(Allan Kardec, O Livro dos
Espíritos, 2ª parte, cap. 10)
César Luchini, jovem generoso, mas temperamental, assistia à reunião
espírita, junto dos pais, embora contrafeito.
Demétrio, o orientador desencarnado, falava, benevolente, em torno da
educação.
- Meus filhos – dizia em determinado tópico do comentário evangélico -,
é preciso amparar a criança, armando-lhe o coração com valores morais.
Muita gente acredita que meninos devem andar à solta, como planta de
mato agreste. E toca a deixá-los na rua, plenamente à vontade. Entretanto,
quando quer couve na horta, dispõe-se a defendê-la e discipliná-la. Ninguém
consegue sustentar pequena horta ou jardim sem esforço. Se, no trato da
Natureza, a vida pede atenção, como entregar a criança a si mesma? O Espírito
comparece no berço com as qualidades felizes ou infelizes que cultivou no
passado e, realmente, não prescinde da vigilância e da instrução necessárias
para o justo aproveitamento na luta que recomeça. Sabendo, de nossa parte, que
a maioria das criaturas torna à reencarnação, em conseqüência dos próprios
erros, é imperioso estender braço forte aos pequeninos, a fim de que, desde
cedo, se fortaleçam para o combate às tentações que surgirão deles mesmos. As
tendências inferiores são raízes muito difíceis de extirpar. E, se relaxamos,
voltam a produzir para o mal, em tempo certo, qual acontece com os vegetais
venenosos esquecidos na terra.
Demétrio terminou, pelo médium, encarecendo a gravidade do problema e
distribuindo renovadoras consolações.
Em casa, Dona Perpétua, a mãezinha de César, desejando fixar os
ensinamentos na memória do filho,
comenta, entusiasmada, os merecimentos da alocução.
Enquanto saboreiam o chá, refere-se aos desajustes da infância, como que
provocando o moço à conversação.
Após ouvi-la, taciturno, durante muito tempo, César considera:
- Não vejo tanta importância no assunto. Respeito a idéia espírita de
amparo à criança, mas acredito que a educação deve ser livre. Contrariar um
menino nas inclinações naturais, será torcer-lhe o íntimo. Chego a admitir, que
muito quadro triste, na delinqüência de jovens, é simples fruto das estranhas
exigências de lares, em que pais ignorantes obrigam filhos a crescer com
desilusões e recalques...
- Meu filho – interveio Luchini, pai -, liberdade sem dever é sementeira
de injustiça e desordem...
César, contudo, rebatia:
- Estou noivo e, a breve tempo, terei minha própria casa. Se Deus
confiar-me algum filho, será livre, crescerá sem qualquer prejuízo ou
superstição...
Diante do azedume que lhe transparecia da voz, calaram-se os genitores.
E, de vez em vez, quando o tema vinha à tona desse ou daquele
entendimento doméstico, o moço tornava à reação, rebelde e agastadiço.
Decorrido algum tempo, César estava casado, pai de família. Em quatro
anos, Cilene, a esposa, culta e caprichosa quanto ele mesmo, enriquecera-lhe o
coração com dois filhos.
Luis Paulo e Vera Linda cresciam mimados e sorridentes.
Como se o
mundo lhes pertencesse, tinham tudo o que desejavam, ao alcance das mãos.
Destruir brinquedos e utilidades parecia neles vocação das primeiras
horas.
Eram em casa diabretes incorrigíveis.
Entretanto, que ninguém ralhasse, mesmo de longe.
Aos próprios avós, Cilene e César não regateavam advertências, nos
instantes de crise.
- Mãe – dizia o rapaz, desenvolto -, não interfira. Os meninos são
livres. Não quero constrangimento.
E a nora confirmava:
- César tem razão. Criança contrariada hoje é doente amanhã. Nossos
filhos não crescerão mentalmente desfigurados.
A vida avançou como sempre.
Quatro lustros passaram céleres.
César Luchini, feliz nos negócios, crescia economicamente na capital
paulista.
Terrenos supervalorizados e algumas aventuras no câmbio consolidaram-lhe
a posição.
Era, enfim, proprietário, com um mundo de amigos.
Os princípios espíritas e os pais, agora desencarnados, haviam
desaparecido no tempo.
O casal endinheirado tinha a semana cheia.
Clubes, recepções, visitas, jogos...
Materialmente, tudo fácil, como barco em brisa leve, no dia azul.
Contudo, se Vera Linda, não obstante voluntariosa e de trato difícil,
perseverava no estudo, preparando o triunfo universitário, Luis Paulo caíra no
resvaladouro do vício.
Aos vinte e seis de idade, era um cabide de maus costumes.
Debalde
tentavam pais e amigos arrebata-lo às companhias deploráveis e perigosas.
Embrutecera-se na vida noturna, consumindo somas consideráveis,
inacessível a qualquer reprimenda.
César e a esposa, a princípio, gritaram, admoestaram, reagiram, mas era
tarde... E porque tivessem largo programa de vida social a atender, passaram a
ignorar a existência do filho, reduzindo-lhe a mesada, na suposição de, com
isso, melhorar-lhe os impulsos.
Enquanto o casal de novos ricos se dava ao luxo das viagens constantes,
desfrutando o prazer das grandes corridas no automóvel de luxo e favorecendo
esportes diversos, abraçando amigos ou bebericando em praias distantes,
mergulhava-se o moço na delinqüência.
Noite agradável de sábado.
O grande jardim, ladeando a casa isolada, recendia perfume raro.
Lá fora, jasmineiros floridos e o vento perpassando pelas folhas das
corismeiras.
César e Cilene, bem-postos, despedem-se da filha que se debruça sobre os
livros, à espera de exame próximo.
O casal tem encontro marcado.
Devem abraçar amigos recém-chegados de Nova York, residentes num
palacete do Jardim América, mas lhe deixam o número do telefone. Que a filha
não se preocupe.
Visita de pouco tempo.
Vera Linda está só.
Liga o televisor e reparte a atenção entre os livros e um cardápio de
músicas televisionadas.
O relógio silencioso marca as horas. Nove, dez, onze...
Súbito, ouve passos. Alguém chega. Levanta-se, tranqüila, na convicção
de que os pais estão de regresso. Contudo, a breve instante, vê um mascarado
que lhe aponta um revólver.
- Não grite ou morrerá! – fala, em voz arrastada.
E ordena ríspido:
- Dê-me a chave do cofre. Quero as jóias da casa. Você sabe...
Adiante-se, não há tempo a perder...
A moça, lívida, atende ao desconhecido que a impulsiona para o interior,
como se conhecesse a intimidade caseira.
Estarrecida, quer pensar, reagir... Mas não pode.Obedece maquinalmente.
Retira a
chave de minúsculo vaso, mas o intruso, de arma em riste, resmunga, firme:
- Abra você.
A moça caminha à frente e penetra no aposento dos pais, seguida pelo
malfeitor implacável.
Ao abrir o cofre, lembra-se de que o pai conservava sempre um revólver
em pequenina gaveta lateral. “Não vacilarei” – refletia consigo mesma. Descerrando
a porta de aço, encontra a arma, tateando-a com os dedos finos. E, em movimento
brusco, aperta o gatilho de encontro ao desconhecido, fulminando-lhe o coração.
O embuçado desfere grito rouco, cambaleia, e cai banhado em sangue. A jovem apavorada
corre ao telefone e disca.
No Jardim América, César e Cilene jogam calmamente o pif-paf.
O capitalista ouve, então, a voz da filha:
- Papai, papai, venha depressa! Matei um homem... Um ladrão...
Varado de angústia, o casal toma o carro, em
companhia de dois amigos. Um deles é médico. Fará quanto possa para amenizar a
tragédia.
Em minutos rápidos, o grupo entra em casa.
Vera Linda soluça.
Descobrindo, no entanto, a face mascarada do corpo imóvel, surge a
surpresa. O morto é Luis Paulo.
A moça aproxima-se, agora semilouca, e atira-se nos braços hirtos do
irmão cadaverizado.
Os pais choram, mas o médico amigo, mentalmente calejado para a solução
dos grandes conflitos da consciência, sugere calmo:
- César, conforme-se. O que está feito, está feito. Estamos à frente de
um suicídio.
Chamarei a assistência e assumirei a responsabilidade.
No outro dia, César e Cilene, de óculos escuros, assistem aos funerais
do filho como se estivessem num desfile de modas, e, passados dois meses,
sozinhos e desolados, acompanham a filha num carro fechado, para trancá-la num
manicômio. (Hilário Silva, Almas em
desfile p. 82 - 86)
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