"Sou um viajante cansado pelas inúmeras
peregrinações terrenas. Muitas vidas vivi e sofri, aprendendo aos poucos a arte
da convivência pacífica. Em passado distante andei por trilhas espinhosas,
cometendo excessos que ainda hoje me provocam arrependimentos.
Contudo, estas experiências foram
válidas, porque só conhece o caminho correto aquele que prova o fel das
contrariedades. Tenciono que os irmãos da Terra aproveitem para meditar, sobre
uma parte de minha senda evolutiva, que vou narrar.
Numa de minhas passagens terrenas mais
marcantes, provoquei a vergonha de meus iguais, por amar a uma criatura que
julgavam pertencer a uma classe inferior. Meus familiares mostraram-se
totalmente contra a minha aproximação de humilde moça, trabalhadora braçal em
nossa rica casa. Ainda como hoje, o preconceito era comum em toda a parte,
naquela época.
A jovem que me encantou tinha olhos da
cor do céu, com longos cabelos cacheados, emoldurando uma face rosada. Parecia
um anjo. Eu era um moço fogoso de modos impulsivos e me deixei apaixonar por
ela arrebatadoramente. Atirei-me no objetivo de conquistá-la, ocultamente, até
que cedesse as minhas investidas. Pouco tempo depois, ela ficou grávida.
Olhares acusatórios lançaram-se sobre
mim, e para desgraça maior da bela moça, eu reneguei a paternidade, embora
gostasse dela. Lembro-me ainda hoje, com tristeza, a expressão de espanto em
seu rosto a fitar-me, diante da minha negativa. Eu era fraco para lutar contra
a ordem natural das coisas naqueles tempos e, covardemente, permiti que a expulsassem
de nossa casa. Era costume antigo repudiar mulheres grávidas que não tivessem esposo.
Senti remorsos por um tempo, mas,
leviano, terminei por esquecer o fato, abafando repetidamente as lembranças que
queriam vir à tona. Não tive coragem nem para ajudá-la às escondidas,
deixando-a sofrer as mais diversas intempéries da vida e da sociedade cruel,
até que a perdi de vista.
Por longas décadas apenas recordava
vagamente aquela doce figura, tão bela quanto indefesa. Então, meus cabelos
encaneceram, mas uma imagem fugidia da moça ainda persistia. Anos mais tarde,
tornei-me um velho.
Num dia que não posso esquecer, bateu à
minha porta uma senhora. Seus olhos, já os conhecia, embora não conseguisse
fixar a quem pertencessem. Seus lábios finos e os cabelos cacheados não me eram
estranhos. Era bela, apesar da idade avançada, e fitava-me sem emitir nenhuma
palavra. Eu estava atônito, pois começava a perceber quem era. Sim! A jovem de quem
eu me enamorara em tempos idos.
Não sabendo o que fazer, pedi-lhe que
entrasse e tomasse assento em confortável poltrona da rica sala adornada. Seus
olhos pregados nos meus, falavam por si só. Não havia acusação neles, apenas
uma melancolia sem fim. Após instantes angustiantes, perguntei-lhe o que
desejava. O silêncio perdurou ainda, perturbando-me sobremaneira, até que, por
fim, seus lábios mexeram-se. Contudo, o som da sua voz não se fez ouvir. Estava
muda em decorrência da emoção. Lágrimas começaram a correr pelos seus olhos e
isto já valia, para mim, como mais que mil palavras. Enquanto isso, um aperto
em meu coração aumentava, até chegar ao ponto em que eu não podia mais
respirar. Então, desfaleci. Não despertaria mais naquele corpo físico. A grande
transformação chamada morte havia se dado.
Do outro lado da vida, ouvia acusações
constantes. A minha consciência bradava resoluta contra meus erros. Permaneci
longos anos num estado de desequilíbrio, causado pelo remorso que explodia em
minha alma. Somente após passar por um grande desgaste, uma alma bondosa pôde
acolher-me sob sua tutela. Ela explicou-me que, apesar de eu ser um devedor
renitente, o Pai Maior sempre nos dá novas oportunidades.
A princípio, não compreendi bem do que
se tratava, mas, após alguns esclarecimentos, entendi que as portas da
reencarnação abririam-se para mim. Só então, apercebi-me que dura missão havia
por realizar, pois seria pai de muitas crianças e estava fadado ao abandono por
parte da mãe dos meus filhos. Ficaria com a responsabilidade quase total pela
criação e educação dos pequenos.
Atendi contrito à minha boa alma guia,
apesar de receoso, já que sabia serem escassas a determinação necessária e a
disciplina para suportar as rígidas condições monetárias, sob as quais
renasceria. Com este estado de espírito lancei-me à nova experiência.
Em singela casa renasci. Minha mãe era
pessoa sofrida e marido não tinha mais.
Cresci, observando-a labutar com
extrema dificuldade na manutenção de seus filhos. Portanto, tive um bom exemplo
desde a infância, aprendendo a trabalhar duramente para auxiliar a todos.
Atingindo a maioridade, conheci moça
leviana com a qual me uni prematuramente, trazendo mais uma vida ao mundo. A
jovem tinha um espírito aventureiro, constantemente sumindo de casa, para
depois retornar sempre maltrapilha e necessitada de cuidados. Eu, como tinha a
consciência pesada em relação ao meu passado espiritual, estava mais humilde, acolhendo-a
de volta todas às vezes.
Com o passar dos anos, a pobre criatura
deu-me mais três filhos, partindo em seguida para não mais retornar.
Trabalhando sob duras provações, fui vencendo obstáculos até que cumpri a minha
obrigação de pai, transformando as crianças em pessoas adultas de bem.
Curvado pela idade e algumas mazelas
físicas, desencarnei sob o carinho dos quatro entes que criei, deixando
saudades na Terra. Uma vez no plano espiritual, o meu passado foi esclarecido
devidamente. A minha bela alma guia tornou a me acolher, desta feita com uma ternura
ainda maior, pois eu havia resgatado com louvor as faltas pretéritas, e também conduzido
corretamente a educação de quatro seres humanos no mundo. Descobri que a infeliz
mulher que me havia sido esposa e mãe de meus filhos nesta última vida
material, estava vagando em planos inferiores, mergulhada nas trevas da sua
própria consciência, há alguns anos. Penalizei-me dela, a quem eu nunca cheguei
realmente a odiar. Para meu espanto, soube que ela houvera sido a filha que não
assumi na minha penúltima existência terrena, quando abandonei levianamente sua
mãe, a jovem com os olhos da cor do céu.
Hoje, compreendo o quanto são
intrincadas as situações que provocamos com atitudes desvairadas. A impunidade
não existe e os resultados negativos de nossos erros sempre retornam a nós, no
tempo devido. Espero que a lição pela qual passei seja útil para quem vir a ler
esta mensagem, principalmente àqueles que caminham na Terra encastelados dentro
do próprio egoísmo, enceguecidos pelas sensações, e escravizados pelo ócio.
A humildade é a fonte da vitória sobre
os instintos grosseiros, porém muitas vezes são necessárias duras provações até
que sejamos humildes. Esforcem-se para desenvolver esta virtude, evitando todo
mau proceder, pois assim se preservarão das fortes algemas que nos prendem à
dor, resultante da Lei de Ação e Reação. Enquanto à retaguarda estiverem seres
nos cobrando justiça, não seremos livres para evoluir para o infinito Amor de
Deus".
(Diversos
espíritos, Depoimentos do além, p.
50-51)
Heveremos
um dia de reconhecermos os nossos erros. Só o amor nos levará a corrigi-los sem
a imposição da dor.
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