sexta-feira, 2 de agosto de 2013

A VIDA CONTINUA




       " Minha filha,
que a paz do Senhor seja conosco!
Desde o momento em que o anjo da morte me dirigiu seu pensamento, enviando-me a lú­gubre mensagem da “angina-pectoris”, um tur­bilhão indescritível tomou conta do meu Espírito.
A princípio, com as carnes sacudidas pe­los estertores do coração que não mais podia cooperar com a vida física, inenarrável sofri­mento tomou-me todas as fibras, do peito ao cérebro e deste aos pés, fazendo-me enlouque­cer. Atormentada entre as idéias da “morte” apavorante que eu temia e a ansiedade da “vida” que escapava ao peso cruel do sangue que se negava a irrigar artérias, veias e vasos, senti que ia tombar.
Reuni as forças que desapareciam céleres, abandonando-me impiedosamente, tentando resistir à violência da dor que me despedaçava toda, e mais não consegui senão emitir gritos de­sesperados, semilouca. Tinha a impressão de que vi­gorosa mão de ferro me estraçalhava o coração e, a par da agonia que não posso descrever, sentia que a vida fugia rápida, fazendo-me desmaiar, sem que, con­tudo desaparecesse a dor superlativa que durante muito tempo iria conservar-me envolta em angústia sombria e inquietante.
Não poderei dizer o tempo em que demorei des­falecida. Guardo, ainda hoje, a impressão de que, em volta, um torvelinho me arrastava, dando-me a sen­sação de queda, em profundo abismo sem fim.
Subitamente, como se me chocasse de encontro ao solo, despertei agonizante, tateando em trevas aos gritos de lamentável perturbação. O peito conti­nuava a doer desesperadamente como se estivesse estilhaçado por violento projétil que o varasse, rom­pendo carne e ossos e deixando-o a sangrar...
Oh! Jesus, o sofrimento daquela hora!...
O tempo passava sem que eu tivesse notícia, se­não através da agonia que parecia não ter fim.
Como a dor não cessasse, simultaneamente im­pressões diferentes me acudiram ao cérebro turbilho­nado, agigantando meu desespero. Frio glacial apo­derou-se lentamente dos membros inferiores, amea­çando imobilizar-me. Ante essa inesperada sensação, tive a impressão de que pesadelo muito cruel me tor­turava, mas do qual me libertaria em breve. Aquietei-me um pouco, acarinhando a expectativa do agradá­vel despertar... porque tudo aquilo não passaria cer­tamente de um sonho mau.
Além do frio, dores generalizadas paralisaram-me os movimentos, enquanto o enregelamento me tornara­ rígida, O pavor rondava-me, implacável. Sem poder mais raciocinar, sacudida nas ondas crispadas desse mar de desconhecidos sofrimentos, vislum­brei tênue claridade, como se a alva tocasse meus olhos. Tive, então, as primeiras noções do lugar em que me encontrava, permanecendo, entretanto, imóvel.
De início, turvas e embaçadas, as imagens não se tornavam reconhecíveis. Inquieta, percebi-me dei­tada no leito costumeiro, hirta e pálida.
Desejei levantar-me, andar, correr, suplicar auxí­lio; estava paralisada, atada a cadeias poderosas. A língua já não se articulava. O cérebro parecia-me de­vorado por labaredas crepitantes. Os olhos, fechados, negavam-me fitar a luz, embora eu “visses tudo e acompanhasse os movimentos exteriores. Escorria-me o pranto incessante, queimando-me a face, e o pensamento se me afigurava qual incandescida cal­deira, cheia de desesperos a destruir-me.
Não tinha idéia das horas.
Indagava mentalmente, no martírio, o que me acontecera. Onde estava o companheiro de tantos anos? Os irmãos de fé espírita, onde se encontravam eles que me não socorriam? Os cooperadores dedi­cados do nosso programa de assistência social, para onde fugiram? Para onde conduziram as criancinhas a que me acostumara a amar; por que não me fala­vam? E lembrei-me do Mestre bondoso que se fizera a segurança de todos os infelizes.
No tumulto do meu cérebro, a figura incompará­vel de Jesus tomou vulto, amenizando lentamente meus sofrimentos. Embora não cessassem de todo, as dores diminuiram e uma quietação momentânea aplacou-me o incêndio interior.
Respirei algo facilmente.
De longe, pareciam-me chegar aos ouvidos sons e vozes abafados. Embora de olhos fechados, “vi” que algumas pessoas choravam.
Atraída, desejei erguer o corpo; senti-me sair de dentro do casulo carnal, que então pude ver. En­contrava-me deitada, no esquife mortuário, e de pé, ao seu lado, simultaneamente. Apalpei-me apres­sada e senti-me físicamente. Tudo em mim vibrava com a mesma intensidade doutrora, avolumando-se às impressões da carne a agressão da dor.
Procurei alargar os movimentos e percebi que o frio terrível desaparecia, desatando-me do porto da rigidez. Andei um pouco vacilante e, de súbito, na mi­nha mente brilhou inesperada idéia: eu não estaria morta, porventura! — indagava-me. Atirei-me apres­sadamente ao corpo, tentando erguê-lo para fugir a esse pensamento “tenebroso” e libertar-me das afli­ções. Não consegui, entretanto, o meu intento. As lá­grimas voltaram a romper as represas e corriam volu­mosas.
Não, não era possível, afirmava intimamente, ten­tando aquietar-me. Tudo aquilo não passava certa­mente de um sonho fantástico ou de um desdobra­mento mediúnico, no Reino da Morte. Não era crível que eu tivesse morrido. Sentia-me viva, não obstante as dores que me cruciavam. Encontrava-me lúcida, raciocinava, sofria... Não podia estar morta. Quando acordasse, oraria e procuraria apagar das lembran­ças aqueles momentos de pavor.
Estive quase aliviada com esses raciocínios. No entanto, a realidade era outra.
Ao abraçar-me ao corpo, senti-lhe a frieza e ve­rifiquei, apesar de deitar-me sobre ele, que não me conseguia ajustar qual ocorre à mão calçada em luva apropriada. Esforçando-me “vesti-lo” outra vez, verifiquei, atribulada, que minha vontade não mais o acionava.
Compreendi, embora relutante: estava “morta”.
Ao admitir esta idéia, fui acometida de profundo terror. Voltaram-me à mente as explanações do nos­so Diretor Espiritual, ouvidas em nosso Cenáculo de orações. Antes de refazer-me da surpresa, descobri-me profundamente ignorante em Doutrina Espírita, que é abençoado roteiro no país dos “mortos”. Ten­tei recapitular os ensinamentos ouvidos antes; toda­via, o inesperado daquela hora descontrolava-me, prostrando-me abatida, mais uma vez.
O torpor, que, antes me invadira, retornou, dei­xando-me livre somente o pensamento que, agora, percorria célere as sendas das recordações mistura­das às lutas da existência, fazendo-me defrontar o corredor da loucura.
Surpreendi-me novamente fora do corpo, apesar de a ele estar atada por fortes cordões que não im­pediam que me distanciasse. Passei, então, a experi­mentar alívio novo e ouvi, emocionada, o murmúrio de preces intercessórias. Nossas crianças (*) e com­panheiros, em volta do caixão funerário, oravam pela minha alma, que se iniciava na grande viagem. Pro­curei ajoelhar-me acompanhando aquele culto de sau­dade, mas, antes que pudesse coordenar os pensa­mentos, leve sono venceu-me, vagarosamente, as fi­bras cansadas, convidando-me ao repouso.
Perdendo-me em remoinho, eu sentia afrouxarem-se-me os músculos, ao mesmo tempo em que meus pensamentos mergulhavam nas águas escuras do es­quecimento. Embora desejasse acompanhar o desen­rolar dos acontecimentos daquele instante máximo de minha vida, deixei-me arrastar pelo cansaço, ex­perimentando invencível torpor mental, enquanto re­cordava que a vida continua..."


(*) Otília Gonçalves foi diretora da Mansão do Caminho”, em Salvador, Bahia, durante alguns meses. Nota da Editora.(Otília Gonçalves / Divaldo P. Franco, Além da morte,p.09)

A passagem do plano físico para o plano espiritual é um momento cercado de muita angústia e inquietação mesmo para espíritos esclarecidos, 
principalmente quando se dá de forma violenta ou repentina.


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